Descendente de escravos, integrante de quilombo, pedreira. Mãe de quatro filhos, Carlúcia de Melo Soares, de 26 anos, moradora de Arraias, no Tocantins, começou a gravar na quarta-feira (11/06) o filme sobre a sua vida. “Mulher Guerreira” é uma das 20 histórias selecionadas pela quinta edição do Revelando os Brasis.
Ela participou das oficinas audiovisuais realizadas pelo projeto no Rio de Janeiro, no mês de fevereiro. O curso, que reuniu 20 moradores de pequenas cidades com até 20 mil habitantes de várias partes do país, repassou noções básicas sobre roteiro, produção, direção, fotografia, direção de arte, som, dentre outras disciplinas. A finalidade era preparar os participantes para transformar as histórias que contaram em documentários ou ficções de curta-metragem.
O Revelando os Brasis promove a democratização do acesso aos meios de produção audiovisual, oferecendo aos moradores das pequenas cidades com até 20 mil habitantes a possibilidade de contar suas próprias histórias através do cinema. Trata-se de um instrumento de registro da memória e da diversidade cultural do país e revela novos olhares sobre o Brasil. O projeto é realizado pelo Instituto Marlin Azul com patrocínio da Petrobras através da Lei Rouanet.
A história e a diretora – Carlúcia nasceu em uma fazenda, no interior do Tocantins. Filha de produtores rurais, ela tem cinco irmãos. Aos 13 anos, saiu da casa dos pais para estudar, indo morar com a avó. Mas não conseguiu manter o ritmo de estudos porque precisou trabalhar como doméstica. Inicialmente, ganhava R$ 30,00 por mês. Com o dinheiro, comprava arroz e feijão que mandava para a família na fazenda e utilizava o pouco que sobrava para comprar material escolar. Em busca de uma condição melhor de sobrevivência, viajou para Goiânia (GO). Nesta época, passou a receber R$ 120,00 por mês, como doméstica.
Foi dispensada do primeiro trabalho, mas arrumou uma nova oportunidade na casa de uma mulher que vivia com o filho, um bebê de oito meses. Não recebeu no primeiro mês de trabalho e a patroa começou a trata-la como escrava, chegando a trancar a porta e esconder a chave. Carlúcia não podia sair da casa, era obrigada a lavar roupa no meio da noite, sendo observada pela patroa durante todo o tempo, como uma prisioneira. Até os porteiros tinham ordem de não deixa-la sair do prédio. “Esta mulher costumava me dizer que preto tem que viver assim”, lembra.
Certa noite, a jovem aproveitou uma distração da patroa, que havia se retirado para tomar banho, e resgatou a chave do apartamento dentro da bolsa. Antes de fugir, lembrou-se de levar o santinho de Santa Luzia que havia recebido da sua mãe como sinal de proteção. Conseguiu se esconder na casa de um primo e acionar a justiça contra a ex-patroa. Por meio de decisão judicial, conseguiu receber R$ 200,00, mas foi obrigada a voltar para seu estado devido às ameaças que passou a receber.
Hoje, aos 26 anos de idade, Carlúcia tem quatro filhos, Luiz Henrique (8 anos), Gabryella (6 anos), Daniel (4 anos) e Kauán (3 anos). Os dois mais novos são filhos de Maurinho, seu atual marido, com quem aprendeu a profissão de pedreira. Quando se interessou pelo ofício, o esposo primeiramente a desencorajou e não se dispôs a ensinar a atividade.
“Ele não queria me ensinar porque eu era mulher. Mas eu disse que se ele não me ensinasse, eu iria aprender com outra pessoa. Então, ele aceitou. Eu sei levantar parede, rebocar, assentar porta e cerâmica, faço qualquer coisa”, relata Carlúcia que conta com o auxílio de um ajudante para preparar a massa, carregar o material e levantar os andaimes.
Moradora da Comunidade Quilombola Kalunga do Mimoso, Carlúcia atua na área há cinco anos e decidiu que irá fazer a faculdade de Engenharia Civil. “Para realizar este sonho, eu preciso fazer vestibular. Já peguei alguns livros pra estudar”, planeja.
Apesar do gosto pela profissão de pedreira, Carlúcia guarda um outro sonho, o de ser dançarina. Dona de um charme e beleza marcantes, ela dedica suas horas de folga à prática das danças tradicionais da região. “Lá em casa, quando estou sozinha, minha diversão é dançar”, acrescenta.
Antes de ser selecionada pelo Revelando os Brasis, ela também havia participado de um curso de produção cultural com duração de 10 meses, na Universidade de Palmas, em que aprendeu noções básicas sobre como montar uma história, fazer um vídeo e a fotografar, além de aprofundar valores como o respeito à igualdade racial.
A equipe do curso acabou por incentivá-la a se inscrever no Concurso Nacional de Histórias do Revelando os Brasis. Segundo a pedreira, o filme mostrará alguns momentos mais importantes da sua vida, como foi escravizada pela ex-patroa, a descoberta da profissão na área da construção civil e o amor pela dança.
“Meu marido não queria que eu fosse para o Rio de Janeiro participar das Oficinas Audiovisuais. Mas quando quero uma coisa, eu faço. Não posso viver só a vida dele. Eu aceito que ele faça as coisas que quer, então, eu disse que queria realizar este projeto. Minha mãe cuidou das minhas crianças durante o dia e meu marido na parte da noite”, relata.
A oportunidade de aprender coisas novas e de fazer amizades marcou a experiência da autora após o projeto. “Aprendi o modo e a hora certa de filmar, a posição da câmera, como organizar o filme com começo, meio e fim. Quando vejo um filme agora, enxergo o enquadramento e assisto de outra forma. Espero que meu filme fique bem bonito e que passe em mostras e festivais”, relata a diretora que já está planejando produzir uma outra obra audiovisual, desta vez, sobre as danças tradicionais locais.
Confira o depoimento da diretora durante as Oficinas Audiovisuais, no Rio de Janeiro: