Revelando os Brasis | FILME RESGATA ROTA CLANDESTINA DE TRÁFICO DE ESCRAVOS EM SÃO PAULO

EDIÇÃO - Ano IV

FILME RESGATA ROTA CLANDESTINA DE TRÁFICO DE ESCRAVOS EM SÃO PAULO

Nem toda a história do Brasil foi contada ou impressa nos livros. Muitos acontecimentos não ganharam registros em documentos oficiais, outros permaneceram restritos ao acesso de poucos pesquisadores e a maioria das informações desapareceu com a morte de testemunhas ao longo do tempo. No entanto, em Salesópolis, no estado de São Paulo, uma estrada cravada na Serra do Mar preserva em seu entorno vestígios do passado histórico brasileiro.
Conhecida como Rota Dória, a estrada clandestina de comércio de escravos inspirou a realização do documentário “Rota Dória”. O roteiro, a produção e a direção são de Gilda Brasileiro. A história, selecionada pela quarta edição do Revelando os Brasis, será lançada ainda este semestre no Circuito Nacional de Exibição do projeto.
Berço do Rio Tietê, Salesópolis, nos séculos XVIII e XIX, foi uma cidade eixo, ligando o Vale do Paraíba, o litoral norte e a capital paulista. Chamada anteriormente por São José do Paraitinga, o município é o último trecho da estrada construída pelo Padre Manoel de Faria Dória, entre 1832 e 1842, com o objetivo de atrair o desenvolvimento econômico para a região. De acordo com a proposta do pároco – franciscano que assumia diversas funções na localidade tais como inspetor de estradas, agrimensor e juiz de paz – quem utilizasse a via pagaria um pedágio cujos recursos seriam destinados às instituições públicas e à manutenção da estrada.
Desde 1831, com a implantação da Lei Feijó, o governo brasileiro considerava livres todos os africanos introduzidos no Brasil a partir daquela data. Completamente ignorada, a legislação abriu espaço para o contrabando de escravos a fim de manter a principal mão-de-obra utilizada na produção do país. Com a morte do padre, em 1843, as autoridades locais fecharam a estrada com a justificativa de que a cidade ficara vulnerável aos ataques dos revoltosos contra o império.
A decisão resultou até mesmo na retirada da via das descrições nos mapas da época.  Segundo a diretora, a medida imposta pelos fazendeiros escondia os interesses escravocratas dos coronéis. A estrada funcionava mesmo como rota clandestina de comércio de escravos feito pelos traficantes negreiros. Após a proibição definitiva do tráfico de negros, em 1850, com a Lei Eusébio de Queiroz, a circulação ilegal pela estrada se fortaleceu.
Com 120 quilômetros de extensão e construída em curvas, a via ligava a Fazendo do Descanso, em Ilha Bela, onde chegavam os escravos, passava por São Sebastião (Fazenda da Engorda, hoje sítio arqueológico), por Caraguatatuba (Parque da Serra do Mar), por Paraibuna e terminava em Salesópolis, no Casarão Senzala utilizado como entreposto comercial, principalmente para a venda de escravos.
Embora ainda desconhecida pela maior parte da comunidade, a estrada existe até hoje, assim como as ruínas dos casarões e igrejas do período.  De acordo com Gilda, o caminho, transformado em rota, levou a cultura africana para a cidade, deixando como herança crenças, danças, ervas medicinais, termos do vocabulário e a resistência negra. Apesar disto, muitas pessoas negam ter havido escravos na região, conta a diretora.
Gravação – A intenção era gravar um documentário com aspectos narrativos do drama. O filme é integrado por depoimentos dos descendentes dos coronéis, dos afrodescendentes e dos especialistas do Centro Arqueológico de São Sebastião. Ao mesmo tempo, a diretora procurou revelar cada trecho da rota percorrida pelos escravos africanos de uma forma que o espectador tenha a sensação da presença do negro, personagem principal da história, mesmo sem caracterizá-lo diante das câmeras. É uma presença subjetiva, mas expressa claramente nos vestígios que sobreviveram ao tempo e ao esquecimento.
O filme mostra desde o desembarque do negro no porto natural clandestino, a passagem pelo local de engorda até a chegada aos pontos de venda criados para abastecer as fazendas. Segundo Gilda Brasileiro, mais de 25 mil escravos, aproximadamente, passaram pela rota no período de 40 anos.
As filmagens duraram seis dias. A diretora conta como foi a experiência de realizar a obra: “A teoria é uma coisa. A prática é outra. Ainda bem que tínhamos a teoria para orientar as atividades. Mas documentário é sempre uma novidade. Você precisa estar apto para ser criativo e deve ficar muito atento”, avalia Gilda.
Todo o processo de filmagem contou com o acompanhamento do documentarista Roberto Manhães Reis da Produtora Virofilm, empresa com sede em Berlim. O diretor vem registrando a quarta edição do projeto desde a etapa de formação, no Rio de Janeiro, no ano passado, e continuará acompanhando até o circuito de exibição nos municípios, registrando as transformações provocadas na comunidade pelo projeto de inclusão audiovisual do Revelando os Brasis.
Por intermédio do filme “Rota Dória”, a diretora pretende chamar a atenção para os traços afrobrasileiros da pequena cidade paulista de Salesópolis e despertar o interesse histórico e turístico pelo caminho clandestino do Tráfico Negreiro. A intenção é revitalizar a rota para a divulgação das riquezas culturais e ambientais do município, localizada na região serrana paulista.
Ao abrigar a nascente do Rio Tietê, Salesópolis tem 98% do território inserido na Lei de Proteção dos Mananciais, que disciplina o uso do solo, proibindo, por exemplo, a instalação de indústrias poluentes. A transformação da cidade em Estância Turística, em 2001, trouxe novas possibilidades de desenvolvimento econômico e social a partir do ecoturismo e do turismo rural.
A diretora – Gilda Brasileiro de Moraes é professora de Química da Rede Estadual de Ensino. Leciona na Escola Estadual “José Carlos Prestes”, em Biritiba Mirim. É graduada em Química pela Faculdade de Humanidades Pedro II (Fahupe), no Rio de Janeiro, pós-graduada em Gestão Escolar pela Uniítalo, de São Paulo, e pós-graduanda em História da Cultura Afrobrasileira pela Faculdade de Tecnologia e Ciência, de Salvador, na Bahia.
Preside a Comissão Histórico Cultural da Estância Turística de Salesópolis. Atua como pesquisadora e escritora sobre temas africanos e afrodescendentes. Escreveu o artigo “Os Versos de Ifa: o livro sagrado que nunca foi escrito”, que integra o livro “As Margens do Atlântico Sul: reflexões negras”, organizado por Gerson Gonçalves da Silva e Bas´Ilele Malomalo. Autora do livro infantil, em processo de impressão, “Rota Dória e a Serra do Mar”.
Nasceu no Rio de Janeiro e há 14 decidiu morar no interior. A decisão fez a diretora resgatar o contato com sua essência ao aproximar-se da natureza. Esta é a primeira vez que se inscreve no projeto. Para ela, o Revelando os Brasis é uma das maiores ideias criadas nos últimos anos voltadas para a democratização e o resgate da cultura. “Resgatar é fundamental para dar visibilidade. Cidades pequenas sempre foram relegadas economicamente. No mundo globalizado, é preciso inserir”, avalia Gilda Brasileiro.
 
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